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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Artigo de dezembro é Resistência de Consciência

"Que em 2022 sobrevenha um ano novo expurgando da vida nacional os maus exemplos de preconceito, discriminação e desconsideração de segmentos sociais, como tem ocorrido nos atos do  Presidente Bolsonaro, bem como se elevem as atitudes de resistência e de consciência como a deste hipotético funcionário especializado em segurança e principalmente que a Justiça do Trabalho, promovendo resistência de consciência comece a decidir de forma a garantir que o Direito do Trabalho se renove com decisões judiciais mais protetivas do trabalhador, já tão fragilizado pelas legislações vigentes que pululam como pragas no país", afirma Wagner Dias Ferreira. 


Resistência de consciência

 

*Wagner Dias Ferreira

 

Desde o fordismo no século XX, as estruturas do capital vão encontrando meios de serem mais eficientes na produção de bens e entregas desses bens aos consumidores. A ponto de ser necessário se criar um ramo específico do direito para estudar as normas que regem as relações de consumo.

 

Vale o reconhecimento de que, quando o Brasil codificou as normas de proteção ao consumidor e regulação das relações de consumo, trouxe ao ordenamento jurídico pátrio inovações surpreendentes. Entre elas, a possibilidade de proteção a direitos difusos.

 

Direitos difusos são aqueles que não têm um titular determinado. O direito de certo modo paira sobre todos, podendo ou não o titular se apresentar para reclamá-lo. Na maioria dos casos, os processos de proteção a direitos difusos enviam os resultados a fundos que irão promover as ações de reparação sem determinar beneficiários determinados.  

 

Essa modernização fez com que os comerciantes precisassem se modernizar. E criou uma zona de interseção onde podem acontecer conflitos entre os direitos do consumidor e direitos do trabalhador.

Hipoteticamente, imagine uma loja onde o comerciante se municiou com estrutura de segurança, com câmeras de circuito fechado, material para gravação que preserva as imagens por um longo tempo, contratação de profissionais especializados para fazer a vigilância in loco das lojas e equipamentos de segurança para detectar eletronicamente quando algum produto está saindo da loja sem ter passado pelo caixa.  

 

Num belo dia, um consumidor circulando pela loja é visto por uma funcionária encarregada da reposição que diz à gerente, há um cliente olhando produtos aleatoriamente na loja, “em atitude suspeita”.  A gerente chama o funcionário da segurança e pede que ele faça uma abordagem. O Funcionário que não viu o comportamento do cliente, porque ficou atrás de gôndolas, permanecendo fora de seu alcance visual, pede para ver nas câmeras como o cliente se comportava para assim justificar sua abordagem. 

 

A gerente, que controla o acesso às imagens, recusa o pedido e diz que o empregado deve abordar a pessoa por ser uma ordem. Claro, o funcionário que é especializado em segurança, e está bem consciente de seus direitos quando figura como consumidor, recusa o comando. Afinal a Constituição Federal proíbe atitudes discriminatórias e sob o manto do argumento de que estavam apenas cumprindo ordens, muitas desumanidades e atrocidades já foram praticadas. 

 

Este funcionário resiste, com uma resistência de consciência, pois não quer agir como um tipo de Ministro da Economia que aceita ser um marionete subserviente a seu mandante. 

A gerente encaminha ao departamento pessoal da empresa o pedido de dispensa do funcionário especializado em segurança porque ele foi desidioso no trabalho já que não cumpriu a ordem que lhe foi dada e ele é dispensado por justa causa.  

 

Esse é um ponto de conflito das relações de trabalho e das relações de consumo. O consumidor tem o direito de ser atendido com dignidade e respeito à sua integridade moral, protegida a sua imagem e as suas convicções. De forma que sua abordagem por um segurança de loja deve ser educada, respeitosa e justificada. Até os juízes precisam justificar seus atos, quando praticados nos processos. Muito mais quaisquer agentes que no exercício de seu múnus precisem se utilizar de força ou atos constrangedores.  

 

Quando o funcionário especializado em segurança pratica, no exercício da função ato discriminatório, a loja tem responsabilidade objetiva pela violação. Mas ela, para se justificar perante a sociedade, preservando marcas e patentes, promove a punição exemplar do funcionário. Nesse sentido, a transferência de responsabilidade do empregador ou de seu preposto para o funcionário especializado em segurança acaba ocorrendo de uma forma ou de outra. Se ocorre a abordagem, ele é responsabilizado. Se não ocorre a abordagem ele também é responsabilizado.  

 

Nesde campo, o Direito do Trabalho precisa agir para proteger o empregado. Uma vez que houve a recusa de praticar um ato, recusa esta que é resistência de consciência, onde a solicitação de abordagem não tinha justificativa plausível, havendo severa necessidade de se abolir do universo prático da segurança pública e da segurança privada brasileira a expressão “atitude suspeita” que está carregada de ideologia, preconceitos, discriminação e direcionamentos para o controle de um determinado segmento social e étnico. 

 

Que em 2022 sobrevenha um ano novo expurgando da vida nacional os maus exemplos de preconceito, discriminação e desconsideração de segmentos sociais, como tem ocorrido nos atos do  Presidente Bolsonaro, bem como se elevem as atitudes de resistência e de consciência como a deste hipotético funcionário especializado em segurança e principalmente que a Justiça do Trabalho, promovendo resistência de consciência comece a decidir de forma a garantir que o Direito do Trabalho se renove com decisões judiciais mais protetivas do trabalhador, já tão fragilizado pelas legislações vigentes que pululam como pragas no país. 

 

* Advogado especialista em Direito Trabalhista e Criminal

 Factótum Cultural:

https://factotumcultural.com.br/2021/12/27/resistencia-de-consciencia/


O Debate:

https://www.odebate.com.br/direitos-deveres/resistencia-de-consciencia.html

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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Direito à propriedade por Frei Gilvander Moreira

Compartilho texto publicado no Brasil de Fato

Fonte: Brasil de Fato

COLUNA


Se há algo de sagrado e de absoluto na propriedade é a sua função social




Frei Gilvander Moreira
07 de Dezembro de 2021 às 17:30

A terra não é apenas pátria (pai), mas mãe: pacha mama, como os povos indígenas quéchuas a chamam e a representam como uma mulher levando ao colo sua criança. - Foto: ABr

A Constituição Federal de 1988 não assegura o direito absoluto à propriedade

Temos que pensar as sociedades, os territórios e a globalização transnacional do capital não apenas como espaços, movimentos e identidades homogeneizantes. Em Minas Gerais, por exemplo, temos grande diversidade territorial e cultural. No Sul de Minas, as monoculturas do café e do pasto predominam. No Sudoeste de Minas, os canaviais mudam o panorama territorial. No Triângulo Mineiro, a pecuária e as monoculturas do café, da cana e do capim.

Em Belo Horizonte e Região Metropolitana, no quadrilátero ferrífero, que é primordialmente um “quadrilátero aquífero”, a exploração de minério de ferro há mais de 300 anos desfigura o território e desertifica várias áreas. Monoculturas do eucalipto se alastram nas regiões Norte, Noroeste e Vale do Jequitinhonha.

Minas Gerais é estado mais assolado e devastado pela monocultura do eucalipto. As comunidades quilombolas estão espalhadas por quase todo o território mineiro, mais de 600 delas já possuem auto reconhecimento. No Brasil, a Fundação Palmares contabiliza a certificação de 2821 comunidades como remanescentes de quilombo rural ou urbano. Espalhados em todas as regiões de Minas Gerais estão centenas de acampamentos e 422 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de vários outros movimentos de luta pela terra.

No Norte de Minas, estão também as comunidades tradicionais: geraizeiros, vazanteiros e ribeirinhos, nas margens dos principais rios. Nessa perspectiva, pode-se inferir que cultura ou território, como um espaço carregado de historicidade, não existe de forma estagnada, fixa, mas como cultura dinâmica, construída a partir de uma situação relacional aberta, e em movimentos constantes de mudanças, de fluxos e contrafluxos.

Nesse contexto, é necessário compreendermos a função social da propriedade da terra como coluna mestra da propriedade. A terra não é apenas pátria (pai), mas mãe: pacha mama, como os povos indígenas quéchuas a chamam e a representam como uma mulher levando ao colo sua criança. Interessa-nos a função social da propriedade da terra, pois propriedade é um conceito, algo abstrato, que se tornou “um direito criado, inventado, construído, constituído”, nas palavras de Carlos Frederico Marés.

Para se compreender a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana, temos que analisar a fundo a questão da propriedade capitalista da terra. Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias, no artigo Função Social da Propriedade: dimensões ambiental e trabalhista, asseveram que “a propriedade não é mais direito absoluto. Com efeito, embora parte da doutrina e jurisprudência, de forma totalmente contrária ao sistema posto, relute em negar proteção absoluta ao direito de propriedade, o fato é que o ordenamento constitucional e infraconstitucional vê que pesa sobre a propriedade uma hipoteca social”.

Propriedade não é direito absoluto

A esse propósito nos referimos à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 2213, que diz: “o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), a propriedade deixa de existir”. Há jurisprudências no sistema judiciário brasileiro em que pedidos de intervenções judiciais da União em Estados da federação foram negados. Por exemplo, na primeira semana de agosto de 2014, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou acórdão em que negou, por unanimidade, pedido de intervenção federal no Paraná para compelir o governo estadual de realizar reintegração de posse com uso da força ao proprietário da Fazenda São Paulo, no município de Barbosa Ferraz, que tinha escritura e registro, mas não cumpria a função social.

Essa decisão do STJ, na prática, definiu que a propriedade não é um direito absoluto e que, por isso, mesmo que o proprietário tenha conseguido na Justiça estadual a reintegração de posse, a execução da determinação judicial causaria muitos danos sociais às 240 famílias de camponeses do MST. O Movimento tinha ocupado a fazenda por dois motivos principais: por necessidade, porque vários princípios constitucionais, como respeito à dignidade humana e direito à terra, não estavam sendo oferecidos pelo Estado e porque a fazenda estava abandonada sem cumprir função social.

Logo, para ser coerente com os princípios constitucionais e também com o objetivo da Constituição de 1988 que busca construir uma sociedade que supere as desigualdades e a miséria, a Corte Especial do STJ tomou uma decisão justa e sensata. Essa decisão foi saudada pelo MST, pela Comissão Pastoral da Terra e pela ONG Terra de Direitos, mas foi duramente criticada pela mídia comercial e por advogados e professores de direito que ainda absolutizam o direito à propriedade.

A propriedade, segundo a ideologia dominante, é algo sagrado, intocável, mas se há algo de sagrado e de absoluto na propriedade é a sua função social, que constitui, em síntese, o seu perfil constitucional. O constitucionalista José Afonso da Silva, afirma que “a doutrina se tornara de tal modo confusa a respeito do tema, que acabara por admitir que a propriedade privada se configura sob dois aspectos: a) como direito civil subjetivo e b) como direito público subjetivo. Essa dicotomia fica superada com a concepção de que a função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito”, conforme se lê no Curso de Direito Constitucional Positivo.

Enfim, diferentemente da Constituição da época do império, a Constituição de 1988 não assegura o direito absoluto à propriedade e condiciona o direito à propriedade ao cumprimento da sua função social. Portanto, a função social é a coluna mestra da propriedade. Sem função social, a propriedade não é constitucional e nem legítima.



Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG

Edição: Larissa Costa