O abraço de Xangô e Themis
*Wagner Dias Ferreira
O mundo moderno precisa reaprender do passado e recriar mecanismos de convivência entre os diferentes, atualizado para as diversidades contemporâneas.
Lendo uma passagem dos atos dos apóstolos, percebe-se que Felipe, discípulo de Jesus, encontra o Eunuco etíope servo da Rainha Candasse, demonstrando que povos africanos, pretos, eram bem aceitos no império Romano e nele circulavam com ares de nobreza. O Eunuco lia sem preconceito o texto judeu, que não era sua cultura original. Ou seja, com abertura ao diverso. Assim, a história pode nos ajudar a incorporar elementos culturais, aos quais não estamos acostumados, mas com significação que pode enriquecer nossa contemporaneidade.
Não é raro encontrar nos prédios do judiciário brasileiro as inúmeras referências à deusa Themis da mitologia grega. Filha de Urano (céu) e Gaia (Terra), tem na sua imagem três elementos significativos: a balança, que representa a equidade dos julgamentos, a venda nos olhos, que expressa sua imparcialidade e a espada com a qual defende/garante a aplicação dos seus veredictos. Universalmente aceita na cultura cristã. Tanto que é incorporada no modo de ser e agir do judiciário pátrio fortemente presente no discurso corrente dos juristas.
No entanto, quando observamos o pai Xangô, orixá da justiça, conforme a cultura afro-brasileira, impera o preconceito e a discriminação. Mesmo não havendo grande diferença de significado entre ambos.
Xangô é considerado um dos orixás mais poderosos da umbanda e do candomblé. Tem como seus símbolos o machado de duas lâminas (oxé), a pedra de raio (edun-ará) e o chocalho que reproduz o som do raio (xeré). Proeminente como deve ser a justiça e chamado de pai pela confiança que se deposita nele.
Em uma de suas muitas lendas ele venceu a batalha sobre um exército numeroso batendo o machado na pedra e gerando raios ou faíscas que eliminavam os adversários.
O orixá foi sincretizado no catolicismo brasileiro na figura de São Jerônimo, santo que traduziu, a pedido do papa à época, o antigo e novo testamentos para o latim, língua principal falada no império romano. E que até o século XX era linguagem corrente na igreja católica. Dessa forma, o orixá da justiça foi sincretizado no santo associado à palavra ou lei de Deus.
Enquanto Themis está vendada para garantir sua imparcialidade, Xangô tem a pedra de raio (edun-ará) para garantir sua firmeza nos julgamentos. Enquanto Themis tem a balança para julgar com equidade, Xangô tem o raio representado pelo chocalho (xeré) que, conectando os mundos espiritual e terreno, permite ao orixá ler as almas. E enquanto Themis tem a espada, o pai Xangô tem o machado de duas lâminas (oxé).
Já que os cristãos não consideram uma heresia a presença cultural da deusa Themis nas estruturas do judiciário e no falar corrente dos operadores do Direito, não se poderia estranhar a presença do orixá Xangô na cultura corrente entre os juristas e em seus discursos inclusive acadêmicos nestes mesmos espaços. Vale lembrar que Xangô também é o protetor dos intelectuais e estudiosos, denotando a necessidade de que as pessoas voltadas para a aplicação das leis devem ter conhecimento, sabedoria e estar sempre dispostos a estudar para o aperfeiçoamento. Sendo por isso aconselhável a incorporação desse orixá aos discursos correntes.
Para aprimorar o direito e incorporar o diverso pela sua importante significação, é hora de abrir a mente e falar com e dos orixás, permitindo o abraço entre Xangô e Themis. Kaô Kabecilê. Axé.
*Advogado e Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG
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